IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
BRASÃO MUNICIPAL OU LOGOMARCA ADMINISTRATIVA?
A ética
parece nunca ter sido a tônica na história da República brasileira, sempre
permeada de desvirtuamentos da atividade administrativa em benefício próprio de
seus gestores.
A
corrupção, a vaidade, interesses mesquinhos e puramente eleitoreiros, a
perseguição são apenas alguns dos inúmeros problemas crônicos da administração
pública do país. Talvez não seria de todo equivocada a afirmação de que se
trata de problema de ordem cultural entre a esmagadora maioria dos agentes
políticos, despidos de qualquer resquício de espírito público e para quem o
lema é levar vantagem em tudo, numa autêntica tradução do primado do interesse
individual em detrimento dos interesses coletivos.
Assim
como toda esfera pública, a publicidade estatal encontra-se contaminada pelas
mesmas distorções e vícios, que redundam em reflexos nefastos para o regime
democrático.
Embora a
Constituição Federal de 1988, em seu art. 57, § 1°, seja explícita em vedar a
publicidade estatal que não tenha caráter educativo, informativo ou de
orientação social e que se utilize de símbolos, imagens, nomes, slogans como
meio de promoção pessoal do administrador público, em todos os rincões do país,
essa, ainda, é uma prática comum e culturalmente aceita pela sociedade.
Trata-se
de uma injustificável e indesejável distorção dos fins da propaganda dos atos
oficiais, que em vez de imprimir o elemento transparência (publicidade) à
atividade administrativa, vem sendo meio de promoção pessoal de seus agentes. A
coisa pública não pode estar a serviço de uma pessoa ou de um grupo político.
SÍMBOLOS
E PUBLICIDADE OFICIAL DOS MUNICÍPIOS
A
Constituição Federal de 1988 incluiu em sua estrutura federativa a figura do
município. Abstraindo-nos, mesmo porque não é objeto do breve estudo, da
discussão sobre o município ter se transformado em unidade federada ou apenas
em unidade da Federação, o fato é que se trata de uma entidade político-administrativa
que goza de autonomia política, administrativa e financeira.
Decorre
de tal autonomia que sua organização é regida por uma lei orgânica, espécie de
constituição municipal (SILVA, 1996, p. 592). Seu conteúdo foi previamente
estabelecido pelo art. 29 da CF/88 que observadas as regras de competências
municipais próprias, deve dispor sobre posse de prefeitos e vereadores,
organização das funções legislativas, perda do mandato do prefeito, entre
outras questões de cunho administrativo.
O art.
13, § 2°, da CF/88 dispõe que os municípios poderão ter símbolos próprios, que
são definidos pela lei orgânica local. Embora, sob o aspecto legal, os
representantes legais do povo venham se pautando pela orientação da Carta Magna
ao estabelecer nas leis orgânicas como símbolos municipais a bandeira, o hino e
o brasão, na prática, verifica-se que se tem impingido à referida norma
constitucional, propositadamente, equivocada e imoral interpretação.
E é pelo
alto grau de imoralidade administrativa e de lesão ao erário municipal que a
questão merece algumas considerações à luz do art. 37, § 4°, da CF/88 e da Lei
n° 8.429/92.
Os
símbolos municipais na Constituição de 1988
Assim
como a Constituição atual (art. 13), todas as Constituições brasileiras a
partir de 1934 fizeram referência expressa à bandeira, ao hino, aos selos, ao
escudo e às armas como símbolos nacionais.
Segundo
Cretella Júnior (1999, p. 1083), “[...] símbolo é ser animado, coisa, objeto ou
animal que pela imagem representa coisas abstratas. O símbolo é imagem, algo em
concreto. A idéia é sempre abstração.” Não se faz necessário tanto esforço
mental para perceber que os objetos tidos como símbolos nacionais (bandeira,
hino, selos, armas) trazem implícita a ideia abstrata de nação, pátria, que
representam de forma neutra o próprio país.
À guisa
da autorização constitucional de estabelecer símbolos próprios para os
municípios, os alcaides do país vêm se utilizando de multivariadas formas de
símbolos, que nada têm a ver com a entidade que deveriam representar, para
divulgação não dos atos da municipalidade, mas de suas obras, serviços, atos,
campanhas etc., como se as mesmas tivessem sido realizadas às suas expensas e
não às do erário municipal. Em nosso modesto ponto de vista, embora essas
práticas constituam um nítido desvio de finalidade por parte do administrador público
de extrema gravidade e atentado contra os princípios administrativos, tomou-se
prática corriqueira em quase todos os municípios do país.
Segundo
Cretella Júnior (1999, p. 1086): [...] os símbolos são elementos ou fatores de
integração política nacional; não existe motivo algum para símbolos próprios ou
locais. A função histórica e sociológica do símbolo é inegável. A ideia é
abstrata. A imagem é concreta. ‘Imagem’ é a lembrança de uma sensação. O símbolo
age diretamente sobre os sentidos; a bandeira sobre os olhos; o hino sobre o
ouvido. Bandeira-hino são impactos diretos e indeléveis sobre todos, servindo como
fatores insubstituíveis para a integração.
Assim,
como fator de integração política nacional e de identificação dos entes que
compõem a Federação brasileira, os símbolos estabelecidos para a República
Federativa do Brasil, no § 1° do art. 13 da CF/88, são insubstituíveis e
limitam o disposto no parágrafo seguinte que autoriza os Estados, o Distrito Federal
e os municípios a terem símbolos próprios. O que não quer dizer que qualquer
coisa ou imagem possa representá-los, mas tão-somente aqueles que na história
das Constituições brasileiras sempre constituíram símbolos (bandeira, hino,
selos, armas).
A
presente assertiva parece-nos de inobjetável acerto, pois o fato de os Estados,
o Distrito Federal e municípios poderem ter seus próprios símbolos quer dizer
que podem estabelecer por meio de suas constituições (Estados e Distrito
Federal) e leis orgânicas (municípios), a exemplo da União, suas bandeiras, brasões
e hinos próprios, mas não símbolos, imagem, slogans que identifiquem determinada
ideologia, facção política ou a pessoa do governador ou prefeito.
A cada
quatro anos, alternando ou não o grupo político no poder, o erário financia a
troca de pinturas em placas, prédios, veículos, uniformes, jornais etc. Ao que
parece, estamos diante de uma imoral e absurda confusão entre o que são
símbolos do município e o que é logomarca privada de cada prefeito ou grupo
político que assume o Poder Executivo municipal. Os símbolos são neutros e
identificam o ente político-administrativo Município, pois, independentemente
da pessoa ou partido político que assuma a administração municipal, a bandeira,
o brasão e o hino serão os mesmos. Já a logomarca, substituída a cada quatro
anos, identifica a pessoa do prefeito ou do grupo político que ele representa,
vinculando todos os atos, serviços, obras, campanhas do município à sua pessoa
e à sua gestão.
Trata-se
da criação de uma imagem institucional privada, própria de determinada
administração (prefeito), que a personifica e, sempre que for utilizada na
publicidade oficial de atos, serviços, campanhas etc., estará vinculada à
pessoa do administrador e não do município, peculiar subterfúgio, que não atende
aos desígnios e espírito da simbologia local à luz do mandamento
constitucional, mas a interesses particulares, já que transmuda em evidente
promoção pessoal do administrador público às expensas dos cofres públicos.
Toda a
atividade administrativa deve estar voltada para a efetiva concretização do
interesse público e realização da cidadania plena. E, nessa seara, o
atendimento a interesses privados e políticos, em detrimento do interesse da
coletividade atenta contra os pilares principiológicos do Estado democrático de
direito, merecendo uma análise mais aprofundada à luz da Lei da Improbidade
Administrativa (Lei n° 8.429/92).
A
utilização de símbolos próprios e a promoção pessoal do administrador público à
luz da Lei nº 8.429, de 02.06.1992
A divulgação
dos atos oficiais da administração pública, em sentido lato, que não esteja
dentro dos contornos traçados pelo art 37, § 1°, da CF/88, inexoravelmente,
violará os princípios administrativos, mormente quando praticada visando ao fim
proibido em lei, o que constitui ato de improbidade administrativa(art. 11 da
Lei n° 8.429/92).
Com
vistas a coibir os notórios abusos de uma classe política descompromissada com
a preservação da coisa pública e dos valores do Estado democrático de direito,
a publicidade dos atos oficiais, valor essencial da democracia e regra em nosso
sistema constitucional, ganhou parâmetros claros e precisos. Dada a importância
do texto para o breve ensaio, peço vênia para transcrever o caput e o § 1° do
art. 37 da CF/88 que dispõem:
Sobre o assunto: “TJMG – APC n°
000151680-600-Comarca de Juiz de Fora – Rel. Des. Antônio Hélio Silva – J.
10.08.1999.”
Art. 37.
A administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional, de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá
aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade e,
também, aos seguintes:
§ 1° A
publicidade dos atos, propagandas, obras, serviços e campanhas dos órgãos
públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social,
dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção
pessoal de autoridades ou servidores públicos.
A
observância da norma supra atende à necessidade da publicidade dos atos de
gestão da coisa pública e evita o nefasto desvio de finalidade com sua
utilização como meio de culto à pessoa do administrador público ou de seu grupo
político.
O
caráter da publicidade dos atos oficiais deverá ser de: educação – entendida
como aquela que de alguma forma melhore a formação física, moral e intelectual
de toda a comunidade; informação – esclareça a população sobre questões de
interesse social, como serviços, campanhas etc.; orientação social – que vise à
conscientização da população sobre questões comunitárias relevantes.
E o
constituinte foi mais além, ao estabelecer os parâmetros da essência da
publicidade dos atos oficiais, procurou preservar a impessoalidade da divulgação,
já que nela não poderá conter nomes, símbolos ou imagens que identifiquem a
pessoa do agente público que a determinou.
E que,
na prática, a fértil criatividade da elite política brasileira que alça ao
poder e que dele se utiliza como meio de satisfação de suas vaidades e pretensões
pessoais faz com que sejam utilizadas as mais variadas formas de subterfúgios
para burlar a vedação constitucional. Vale-se de logomarcas, cores, slogans
etc. que acompanham a publicidade dos atos oficiais, ao imoral, porém, não
menos ingênuo argumento, de que aquele visa tão-somente identificar a pessoa
jurídica de direito público ou órgão responsável pela veiculação, e não a
pessoa que a administra.
A
utilização sorrateira de tais meios mediante atos administrativos transmuda em
evidente desvio de finalidade, pois não se conforma com o interesse público,
fim último de todo e qualquer ato administrativo. Assertiva válida até mesmo
pelo caráter objetivo do vício, “[...] pouco importando, pois a intenção do
agente, se agiu de boa ou má-fé porquanto a invalidade insere-se, sempre que o
agente, servindo-se de uma competência abstrata que possui, busca uma
finalidade alheia a qualquer interesse público.”
Como
obtempera insigne colega ministerial mineiro, Tonet (1997, p. 15), embora
muitas vezes a divulgação até atenda aos limites pedagógicos do texto
constitucional, vem esteriotipada com fotos, nomes, símbolos ou slogans do
agente público ou de seu grupo ou partido político, desviando-se pela via ímproba
e inconfessável da promoção pessoal. E o que é pior, em matérias pagas pelo
erário em jornais, revistas ou periódicos locais de grande circulação, e por
isso mesmo de alto preço, em total afronta ao mandamento constitucional.
Uma
indisfarçável distorção da finalidade da publicidade oficial que, embora lícita
em sua essência, mostra-se eivada de nulidade pela camuflagem desonesta
utilizada para sua veiculação.
Outra
não pode ser a conclusão senão a de que essa prática constitui ato de
improbidade administrativa de acordo com a norma estatuída no art. 11, I, da
Lei n° 8.429/92, pois não se harmoniza com os valores essenciais do Estado
democrático de direito, já que atropela os princípios administrativos da impessoalidade
e da moralidade com seu caráter promocional privado e transmuda em indesejável
desvio de finalidade.
Uma vez
comprovada a publicidade oficial com fins de promoção pessoal, torna-se
prescindível a comprovação de qualquer dano ao erário para a aplicação das
sanções previstas no art. 12, III, da Lei de Improbidade Administrativa.
Fonte: GENNEY RANDRO BARROS DE MOURA
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Professor de Processo Penal da UEMG – Campus Ituiutaba/MG
Especialista em Ciências Criminais e Mestrando em Direito
Público – UNIFRAN/Franca/SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário